O
que são "meios de produção"? Qual a
importância deles para uma sociedade?
Como eles são criados, expandidos ou meramente mantidos? Qual a relação entre a ordem moral vigente de
uma sociedade e seu nível de acumulação de capital?
Estas
são questões sobre as quais economistas e filósofos políticos vêm meditando ao
longo de toda a história do pensamento econômico.
Se você já se pôs a pesquisar as diferenças
entre capitalismo e socialismo, você certamente já terá ouvido falar no termo
"meios de produção", e certamente já terá alguma ideia do quão importante eles
são para a organização de uma sociedade.
Da
mesma forma, você pode até já ter ouvido falar, mas talvez ainda não tenha
dedicado muito tempo a constatar a relação entre capital e ordem moral.
Com efeito, por que as pessoas comuns
deveriam se preocupar com tais coisas?
Meios de produção não seriam apenas algo sobre o qual universitários
lêem entre uma balada e outra? Ou talvez
não seriam algo exclusivamente da alçada de contadores e administradores,
preocupados com as técnicas corretas do método contábil das partidas
dobradas? Qual a sua grande importância?
Como,
afinal, seria uma sociedade sem capital, sem meios de produção? Ela conseguiria manter a moralidade?
Ao
contrário do que muitos imaginam, é perfeitamente possível imaginar como seria
este mundo recorrendo apenas à teoria — muito embora a experiência dos países
comunistas, nos quais os meios de produção foram exauridos, possa nos servir
como um ótimo exemplo empírico.
Um mundo
sem meios de produção seria inóspito, frio e selvagem. As terras
férteis, por não mais poderem ser
trabalhadas da maneira correta, deixariam de ser cultiváveis. Haveria
escassez de alimentos. A fome estaria por todos os lados. Isso levaria
a saques e pilhagens, e,
consequentemente, ao desaparecimento de lojas, mercearias e
supermercados. Aqueles que porventura conseguissem coletar
alimentos naturais para estocá-los teriam de vigiar continuamente suas
posses,
pois se tornariam presas de outros humanos famintos. No final, a fonte
de alimentos seria uma só:
a carne dos outros humanos. O homicídio
e o canibalismo seriam práticas não apenas corriqueiras, como também
totalmente
necessárias para a sobrevivência.
1. Civilização, capital e ordem moral
De
onde vem a nossa comida? O que permite a
existência da civilização? Embora a
civilização moderna seja bastante complexa, ela também é muito simples em sua
essência, pois está erigida sobre três formas de capital físico que compõem os
pilares de qualquer ordem civilizada.
Uma
delas é o capital físico natural construído pelo homem, o qual os humanos
utilizam para sobreviver e para realizar a produção de bens. Tratores, escavadeiras, britadeiras, serras
elétricas, ferramentas em geral, computadores, maquinários, equipamentos de
construção, edificações, fábricas, meios de transporte e de comunicação, minas,
fazendas agrícolas, armazéns, escritórios etc.
Estes bens de capital são os meios de produção. São eles que não apenas tornam o trabalho
humano mais produtivo, como também possibilitam toda e qualquer produção e
distribuição de bens e serviços.
Além
deste capital físico, há duas correspondentes formas de capital humano: o
conhecimento técnico para operar este capital físico e sustentar a produção de
bens, e a ordem moral necessária para preservar o uso organizado dos recursos
escassos.
O grau de vida civilizada que
existe atualmente só é possível porque herdamos de nossos antepassados capital
físico e conhecimento tecnológico, e também porque temos algum senso da ordem
moral necessária para preservar este arranjo.
A
história da civilização é a história da acumulação de capital. Isso inclui não apenas a acumulação de
capital físico, mas também uma correspondente acumulação de conhecimento
técnico e moral. Somos civilizados
apenas até o ponto em que passamos a nos perguntar que espécie de ordem moral é
necessária para preservar a acumulação de capital.
Qual tipo de ordem moral sustenta um meio de
produção?
Vivendo
em meio a uma civilização próspera, é fácil para as pessoas se tornarem
levianas e petulantes quanto à ordem moral necessária para preservar a
acumulação de capital. Não mais se dá o
devido valor ao esforço e ao trabalho duro.
Grandes estoques de bens de capital já estão disponíveis para nós, de
modo que a preocupação de várias pessoas passa a ser apenas a de como
"distribuir" estes bens de modo a satisfazer seu desejo e sua ânsia por
"justiça social".
Em
uma situação de tamanha abundância, é fácil o relativismo moral e o niilismo
prosperarem. Tudo passa a ser subjetivo,
e o 'bom' passa a ser qualquer coisa que "os representantes do povo" estipulem
ser. Aqueles que fazem pouco caso das
regras morais que preservam a acumulação de capital frequentemente imaginam
estar atuando em prol dos fracos e oprimidos.
Porém, um eventual colapso do capital acumulado traria o colapso de toda
a civilização, e isto seria extremamente nocivo tanto para os fracos quanto
para os fortes. Com efeito, se há alguém
totalmente dependente da ordem civilizada, este alguém é justamente aquele que não
tem a menor chance de sobreviver sob o jugo do mais forte em uma ordem sem
civilização.
Na
ausência de meios de produção para sustentar a civilização, o homem retornaria
à sua natureza predatória, o que levaria à inevitável degeneração da ordem
moral.
2. Por que não estamos nos canibalizando agora
mesmo?
Refletir
sobre os prováveis efeitos de uma maciça destruição do capital é um fascinante
experimento mental. É algo que nos
propicia valorosas constatações sobre a natureza humana e a fragilidade de
nossa atual civilização.
Não importa se
a destruição do capital ocorrerá por meio de uma repentina hecatombe nuclear ou
por meio de um lento e gradual esgotamento do capital acumulado no
passado. Se os meios de produção forem
destruídos, ou simplesmente não forem mantidos, é certo que a humanidade estará
em um inexorável caminho rumo à fome e à predação.
O
que nos impede de estarmos recorrendo ao canibalismo hoje mesmo? Quanto tempo levaria para que as pessoas em
nossa civilização recorressem a brutais atos de selvageria na eventualidade de um
desastre catastrófico? Quanto tempo até
vermos as pessoas começarem a caçar, manter em cativeiro e se alimentar de
outros humanos?
Há
duas razões essencialmente comportamentais que impedem que os atuais humanos se
tratem de maneira fragorosamente predatória.
Uma razão é moral: há uma ampla aceitação de que, em nossas atuais
circunstâncias, é errado e maléfico escravizar e se alimentar de outras
pessoas. A outra é contextual: o capital
acumulado de nossa civilização é suficiente para garantir que nós simplesmente não
necessitemos de nos alimentarmos de outras pessoas — já temos comida abundante
à nossa disposição.
(Uma
outra razão que poderia ser mencionada é resultante dessas duas anteriores:
tememos a punição que nos seria imposta por nos alimentarmos de outras
pessoas. No entanto, esta é uma
preocupação ínfima em nossa atual civilização e praticamente inexiste na mente
da maioria das pessoas. A esmagadora
maioria das pessoas evitaria o canibalismo sob as atuais circunstâncias
independentemente de se elas fossem ou não punidas por tal ato, simplesmente
porque elas não querem ou não necessitam incorrer neste tipo de
depravação. Mencionamos esta motivação
apenas para explicar que ela não está presente na maioria das pessoas.)
Estas
duas fontes de comportamento civilizado — moral e contextual — não são
independentes uma da outra. Nossa visão
moral a respeito da escravidão e do canibalismo foi formada dentro do contexto
de uma sociedade próspera na qual estas atividades não são necessárias para suprir
nossas necessidades — ou seja, o atual contexto em que vivemos afeta nossa
moralidade.
Similarmente, o fato de não
termos necessidade por este tipo de comida é por si só resultado da acumulação
de capital gerada em decorrência de termos um sistema ordenado de produção
erigido sobre regras morais — ou seja, nosso sistema moral afeta nossas
atividades, as quais afetam o contexto em que vivemos.
Embora
a primeira conexão seja amplamente apreciada, a segunda não é tão bem
compreendida, e várias pessoas são propensas a tratar os frutos da civilização
como sendo coisas que simplesmente surgiram do nada (ou como resultado da
ciência e da tecnologia, as quais também teriam surgiram do nada), não
necessitando de quaisquer princípios morais particulares para sustentá-las.
O
fato de que o comportamento das pessoas depende de fundações morais totalmente
relacionadas ao contexto em que vivemos é, por si só, um pensamento apavorante
— muito embora as pessoas hoje pensem que o canibalismo é algo abominável,
coloque-as vivendo por alguns meses em um mundo moribundo e pós-apocalíptico e
veja se elas não irão mudar de ideia.
Sim,
os princípios morais que alicerçam nossa atual civilização são extremamente
frágeis, e é justamente a acumulação de capital e a consequente existência de
meios de produção o que nos impede de mergulharmos na barbárie.
3. Ordem moral? Que ordem moral?
Se
há uma forte conexão entre ausência de capital e ausência de ordem moral, e se
o capital é de extrema importância para a vida civilizada, então qual é a ordem
moral necessária para se acumular e preservar capital?
Para
responder a isso, temos de entender que capital é algo formado e preservado por
esforços produtivos que visam a uma recompensa futura. Por sua própria natureza, a acumulação de
capital é uma atividade que requer uma abstenção de consumo no presente,
abstenção esta que permitirá uma acumulação de poupança, a qual, por sua vez,
possibilitará o aumento da produtividade no futuro. (Mais detalhes sobre este processo aqui).
Para que este equilíbrio de trocas seja
vantajoso, é necessária a existência de direitos de propriedade que funcionem
como "fronteiras delimitadoras da ordem" em nossa interação com outras
pessoas. É isto que nos permite acumular
capital e evitar a barbárie. É isto que
nos permite poupar para o futuro tendo a garantia de que colheremos alguma
recompensa, em vez de apenas vermos nossos esforços sendo esbulhados por
saqueadores e assassinos.
A
ordem moral adequada para a vida civilizada é aquela que, de um lado, permite a ação
cooperativa de indivíduos que almejam ganhos mútuos, e de outro, impede a
coerção. Sempre que esta ordem moral foi
praticada, ela permitiu ao homem construir capital e desenvolver e aprimorar a
vida civilizada. Sempre que ela foi
violada, surgiram impedimentos à acumulação de capital e houve até mesmo uma rematada
destruição de capital.
4. Capital, ordem moral e sobrevivência
humana
Se
o homem perder todo o capital acumulado pela civilização, não haverá meios de
produção. Consequentemente, sua própria
vida estará em risco. Em situações assim, toda a
ordem moral que sustenta uma civilização tende a se esfacelar.
E
por que, afinal, estou insistindo neste ponto?
Porque o mundo se encontra hoje em um gradual e contínuo processo de repúdio
da ordem moral que sustenta o processo de acumulação de capital. Percebe-se em todos os cantos do globo uma
temerária desconsideração da parte de várias pessoas por qualquer elo entre uma
ordem moral objetiva baseada na conduta cooperativa e a acumulação e
preservação de capital.
São vários os
indivíduos que creem que a acumulação e preservação do capital necessário para
sustentar nossa atual abundância é algo que pode ser perfeitamente separada de
toda e qualquer ordem moral.
Aqueles
que se preocupam com a "distribuição" da riqueza acumulada no mundo representam
uma força imprudente que está corroendo aos poucos as fundações da ordem
civilizada. Que eles façam isso sob a
pretensão de estarem atuando pelo bem dos pobres e oprimidos apenas mostra o
quão grande é sua ingenuidade e sua desconsideração pela natureza do homem quando
este perde sua civilização.
O problema
com esta situação não é meramente o perigo de esgotamento do capital físico,
mas sim algo bem mais profundo e mais total: trata-se de uma deterioração moral
que está gradualmente solapando a capacidade das pessoas de produzir e
sustentar a produção. Cada medida
coerciva defendida e aprovada por estas pessoas interfere na ordem moral da
propriedade privada e nas transações voluntárias e cooperativas. Isso, por sua vez, ajuda a solapar a
acumulação de capital, debilitando os meios de produção e afetando toda a vida
civilizada que eles sustentam.
Solapar
a acumulação de capital e, consequentemente, exaurir os meios de produção não é
uma política que trará resultados bonitos.
Tampouco se trata de uma política compassiva que trará benefícios aos
pobres e oprimidos. Ao contrário, eles são
os que mais irão sofrer.
Há
uma forte conexão entre capital e ordem moral que jamais deve ser
ignorada. Em suas raízes, os seres
humanos são animais; e, como os outros animais, temos uma hierarquia de
necessidades a serem satisfeitas. Não
obstante nossa capacidade de raciocinar e ponderar sobre nossa própria conduta,
nosso modo de comportamento sempre irá refletir a necessidade de satisfazer estas
carências de alguma forma.
Em nossa
atual civilização, em meio a toda a sua abundância, a ideia de escravizar e
canibalizar outras pessoas (inclusive crianças e bebês) é horrenda e
revoltante, mas trata-se de uma realidade da natureza humana o fato de que isso
pode vir a ocorrer sob circunstâncias terríveis e urgentes. O que nos protege deste resultado é o capital
acumulado no passado e nossa capacidade de proteger este capital ao formularmos
uma adequada ordem moral para conduzir nossas ações. Se formos negligentes quanto ao elo entre
ordem moral e acumulação de capital, estaremos implorando pelo desastre.
Quando
uma pessoa afirmar com desenvoltura que regras morais são apenas julgamentos
subjetivos, ou que elas são algo que transcendem preocupações triviais com
relação a bens materiais, pergunte a si mesmo aonde este tipo de posição tende
a levar. Se o homem adotar esta visão em
larga escala, você acha que ele ainda existirá daqui a mil anos?
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também:
Ben O'Neill é
professor de estatística na Univesidade New South Wales, em Canberra,
Austrália. Já foi também advogado e conselheiro político. Atualmente é
membro do Independent Institute, onde ganhou em 2009 o prêmio Sir John Templeton de competição de ensaios.
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